O Diabetes Mellitus (DM), é um distúrbio metabólico que se caracteriza por hiperglicemia persistente, decorrente de deficiência na produção de insulina ou na sua ação, ou ambos os mecanismos. O estado de hiperglicemia persistente se associa a complicações crônicas microvasculares e macrovasculares, aumento de morbidade, redução da qualidade de vida e elevação da taxa de mortalidade (KATSAROU et al., 2017; TAN et al., 2019).
Na tentativa de elucidar a história natural e a patogênese do diabetes, há evidências de que indivíduos com diabetes mal controlado ou não tratado desenvolvem mais complicações do que aqueles com o diabetes bem controlado. Apesar disso, em determinadas circunstâncias, as complicações do diabetes são encontradas mesmo antes da hiperglicemia, evidenciando a grande heterogeneidade deste distúrbio metabólico (RASK-MADSEN; KING, 2013).
O DM é uma condição clínica patológica que atinge a população em proporções epidêmicas, com estimativa de 425 milhões de pessoas com DM mundialmente (TONIOLO et al., 2019). Tem se tornado um problema de saúde para todos os países, independentemente do seu grau de desenvolvimento e condições em serviços de saúde. Em 2017, a International Diabetes Federation (IDF) estimou a população global com DM em 463 milhões em 2019, e projetou 700 milhões em 2045 (SAEEDI et al., 2019).
Dentre as variadas complicações do diabetes, a mais comum e específica, a Retinopatia Diabética (RD), também é uma das principais causas de cegueira evitável na população trabalhadora adulta (KROPP et al., 2023). O Global Burden of Disease Study descobriu que, em adultos com 50 anos de idade ou mais, a RD foi a quinta causa de cegueira e de deficiência visual moderada e grave. Em particular, a prevalência global padronizada por idade para cegueira resultante da doença diabética dos olhos aumentou de 14,9% para 18,5% de 1990 a 2020 (FERNANDES et al., 2022).
Estudos epidemiológicos brasileiros divulgados em 2018 avaliaram a prevalência de RD em pacientes com diabetes tipo I. A prevalência média brasileira foi de aproximadamente 35,7%. As regiões brasileiras com maiores índices de prevalência foram o Sul, na qual 42,9% dos pacientes avaliados apresentavam algum grau de RD, e Centro-Oeste, com 41,7%. As regiões Norte e Nordeste apresentaram a menor prevalência (29,9%); porém, apresentaram os maiores índices de HbA1c elevado (9.3±2.3%), fator frequentemente associado com a RD. Outros fatores mais associados foram a longa duração do diabetes e elevação de ácido úrico sérico. A realidade econômica foi outra variável de mostrada no estudo. No Norte e Nordeste, os pacientes com níveis econômicos médio e alto apresentaram prevalência 80% menor de RD proliferativa, em relação à população (FERNANDES et al., 2022).
Em termos fisiopatológicos, a RD é uma complicação neurovascular específica do diabetes. Estima-se que existam 415 milhões de pessoas com diabetes no mundo e 93 milhões de indivíduos com algum grau de RD, e aproximadamente 33,3% dessa população necessitam de algum tratamento. Já outros estudos elencam evidências de que a RD afeta cerca de 35 a 40% dos pacientes com DM, o que equivale, aproximadamente, a 4 milhões de pessoas no Brasil (LEE; WONG; SABANAYAGAM, 2015; WONG; SABANAYAGAM, 2020).
As sociedades de oftalmologistas especialistas em retina de todo o mundo têm recomendado acompanhamento oftalmológico com exames anuais, semestrais e até mensais a depender da gravidade de RD apresentada pelo paciente, haja vista que esta população tem risco de apresentar outras patologias do ponto de vista oftalmológico, como catarata e glaucoma (SOLOMON et al., 2017).
A concordância a estas recomendações apresenta, atualmente, desafios. Estudos realizados pela Academia Americana de Oftalmologia (AAO) concluíram que apenas 30% dos diabéticos seguem o regime de acompanhamento oftalmológico recomendado (LANZETTA et al., 2020). Os motivos para esta baixa aderência a cuidados especializados incluem desconhecimento acerca da RD, além da dificuldade de acesso do paciente a exames oftalmológicos, tanto por má distribuição de médicos oftalmologistas, como, no Brasil, pela carência de especialistas em retina fora de grandes centros e no âmbito do SUS (MALERBI et al., 2022).
O uso de tecnologia portátil, através de um fluxograma desburocratizado, poderia mudar o panorama da cegueira e deficiência visual pela RD em meio a população diabética, podendo, inclusive, ser incorporada em programas existentes de promoção de saúde nesta população, dado ainda mais relevante se considerado o rápido aumento da prevalência global de DM (MALERBI et al., 2022).
Como a perda visual pode não estar presente nos estágios iniciais da retinopatia, o rastreamento oftalmológico de pessoas com diabetes é essencial para permitir o diagnóstico e a intervenção precoces. Variados estudos internacionais indicam que o risco de cegueira pode ser reduzido para menos de 5% se a RD for diagnosticada e tratada precocemente. Enquanto que, por outro lado, estima-se que 50% da RD proliferativa não tratada pode evoluir para cegueira em 5 anos (KROPP et al., 2023; WONG; SABANAYAGAM, 2020).
Estudos em vários países e populações demonstraram que a prevalência de cegueira e deficiência visual entre pacientes com diabetes é menor entre as populações com programas que fornecem avaliações da retina para todos os pacientes com diabetes, reduzindo a incidência de cegueira a uma taxa de 95% (TING; CHEUNG; WONG, 2016).
O modelo tradicional de atendimento ao DM prestado em diferentes contextos (comunitário, primário e especializado/terciário) tem sido amplamente ineficaz em abordar os aspectos multifacetados do DM, resultando em problemas de acesso aos cuidados e resultados ruins em muitos países, independente do seu índice de desenvolvimento (BORGES; LACERDA, 2018).
No nível da comunidade e da atenção à saúde, a falta de programas universais de triagem de retinopatia diabética em muitos países, apesar das evidências robustas que apoiam a eficácia de tais programas, é uma grande lacuna no atendimento oftalmológico público (PEARCE; SIVAPRASAD, 2020).
Há, portanto, a necessidade de novos modelos de cuidados inovadores — até mesmo transformadores — que incluam uma abordagem coordenada para lidar com o DM e suas complicações (WILLIAMS et al., 2020).